Amor em Dobro

Nome Original: Twin Falls Idaho (EUA, 1999)
Direção e Roteiro: Michael Polish / Mark Polish
Elenco: Michael Polish, Mark Polish, Michele Hicks, Patrick Bauchau

Em 1988, o diretor canadense David Cronenberg fez um estudo de personagem brilhante em “Gêmeos – Mórbida Semelhança” (Dead Ringers), em que tratava da psique de dois irmãos gêmeos que dividiam todas as experiências da vida. Onze anos depois, os irmãos gêmeos na vida real Michael e Mark Polish, revisitam esse terreno, só que de forma mais ligada, trazendo a estória de dois gêmeos siameses e uma mulher que surge para mudar suas vidas e para ter sua vida mudada por eles. Só que enquanto o canadense fez um filme cerebral – que é sua marca registrada – os irmãos Polish trazem um tratamento delicado e emotivo sobre a vida de seus protagonistas.

Penny (Michele Hicks, em sua excelente estreia no cinema) é uma aspirante a modelo que, ao tentar a sorte na cidade grande, acaba se tornando prostituta. Ao receber um trabalho de seu cafetão, ela encontra os irmãos Falls (Michael e Mark Polish), gêmeos siameses que a contrataram para o dia do seu aniversário. Perplexa com a visão dos gêmeos, ela foge deixando para trás sua bolsa. Ao voltar, envergonhada, para busca-la, acaba conhecendo a natureza gentil de seus clientes rejeitados e passa a ajuda-los quando percebe que um deles está doente.

Ainda que o título original leve o nomes dos irmãos Falls, a verdadeira protagonista do filme é Penny. Vivendo em um universo oportunista e feio, ela tem uma visão fria e indiferente do mundo, mas ao se aproximar dos irmãos Blake e Francis, vê quão harmoniosa e solidária pode ser uma relação humana.

“Amor em Dobro” é um filme de poucos diálogos, que são sempre funcionais. Descobrimos a natureza de seus personagens através da fotografia e da direção de arte, o que por si só já torna esse filme obrigatório para qualquer fã de cinema. Mesmo com a câmera em perspectiva de narrador oculto – é a mais comum do cinema – ela retrata a visão subjetiva de Penny e dos irmãos Falls. Por ela podemos perceber a diferença na forma de ver o mundo e de encarar as pessoas. Penny é indiferente e desconfiada, e tenta manter uma distância segura de todos os que se aproximam dela. Em suas cenas, a fotografia ganha um tom azul, quase monocromático. Os quadros são mais abertos, fazendo com que ela fique distante da câmera e, automaticamente, do espectador. Já os irmãos Falls são gentis e atenciosos. Suas cenas tem cores vivas, sempre em tons sóbrios e fortes. Os quadros são mais fechados e eles ficam mais próximos à câmera.  Veja abaixo como a visão subjetiva é nítida, sendo expressa apenas pela fotografia do filme.

Quarto dos irmãos Falls, visto aos olhos de Penny, à esquerda; e o mesmo quarto, na cena seguinte, agora visto aos olhos dos Falls, à direita.

O primeiro contato entre Penny e os irmãos e o reencontro após a rejeição inicial. Repare na profundidade de campo da cena à esquerda, que dá a impressão de distância entre os personagens. Já na da direita, temos a perspectiva dos gêmeos, e eles estão bem mais próximos.

Após a aproximação entre eles, Penny se torna mais aberta e comunicativa. Temos a impressão que conhecer os irmãos Falls fez renascer nela a fé nas pessoas. Sua perspectiva ganha cores mais vivas e quentes.

A cena à esquerda é de pouco antes de Penny conhecer os irmãos. A cena à direita é logo após o primeiro contato.

Logo após o primeiro contato, entra em cena o médico Miles, que funciona como bússola moral do filme, e algumas de suas falas mostram a natureza de Penny e até mesmo desafios morais ao espectador, em especial no terceiro ato. Os roteiristas/diretores foram muito inteligentes quando estabeleceram as falas desse personagem, pois mesmo quando elas seriam expositivas – recurso de roteirista preguiçoso/diretor incompetente, também são funcionais. O momento em que ele descreve o impacto de Blake e Francis na psique de Penny, por exemplo, poderia ser mera exposição dos processos internos da personagem, mas ele acaba sendo também uma amostra da intimidade que o médico tem com ela, chegando ao ponto de entender como sua mente funciona.

O figurino de Blake e Francis também merece destaque. Usando sempre tons marrons, que demonstram a sobriedade dos dois, houve a preocupação de fazer com que usassem camisas e gravatas parecidas, mas com estampas diferentes, deixando claro ao espectador – de forma consciente ou não – de que apesar de serem unidos, eles não partilham da mesma personalidade. E a personalidade deles é outro ponto interessantíssimo e essencial para que acreditemos na existência daquelas pessoas. Blake é mais amável e ingênuo com as pessoas, mas também é completamente lúcido quanto à sua condição e a de seu irmão, mantendo constantemente um ar melancólico, que é enaltecido pela discreta trilha sonora de Stuart Matthewman. Já Francis é desconfiado e recluso, mas também bastante otimista. Esses contrastes tornam os irmãos Falls personagens tridimensionais e realistas. A diferença entre eles se torna rica principalmente pelo belo trabalho de composição de personagem de Michael e Mark Polish.

Repare nas estampas de suas camisas e gravatas e nas expressões de ambos.

Mas mesmo sendo um tratado sobre o íntimo de seus personagens, o filme não ignora o sofrimento que os irmãos sofrem por sua condição. Ainda que ele seja posto de lado na maior parte da projeção, há uma única cena que ilustra a visão animalesca com a qual a sociedade os vê, e que é suficiente para que entendamos que aquilo não é momentâneo, mas uma constante em suas vidas. Eles são como animais em um zoológico.

Já Penny é uma personagem que vai sendo desconstruída com o filme. Se a mudança de comportamento da moça pode soar abrupta para alguns, o filme resolve isso durante o segundo ato, em especial quando conhecemos o apartamento onde mora. Todo em tons vermelhos e com objetos delicados e femininos, seu lar deixa claro que ela não tem uma natureza fria, mas que a vida na cidade a tornou assim. Sua natureza é cheia de paixão e alegria, características que estavam adormecidas e foram acordadas pelos Falls. Porém, sua psique é frágil, e o distanciamento dos gêmeos que ocorre no fim de segundo ato faz com que ela instantaneamente volte ao seu estado anterior.

Apartamento de Penny.

O terceiro ato é o único que realmente é dedicado a Blake e Francis, quando passamos a ter contato mais íntimo com eles, e vemos que apesar de toda a sua cumplicidade, a relação entre eles não é totalmente harmoniosa, mas cheia de pequenos conflitos como as de quaisquer irmãos. Esse ato também funciona como um confronto com o espectador, e faz com que pensemos se a compaixão que passamos a sentir pelos irmãos Falls é altruísta ou apenas uma empatia superficial causada pela manipulação da câmera. Miles, o médico, novamente tem a função de bússola moral (Alguém já perguntou como ELES se sentem sobre sua própria situação?). Só que enquanto o alvo do primeiro ato era Penny, no terceiro ato o alvo somos nós.

Apesar de todos os méritos do filme, ele tem suas falhas. A mãe dos irmãos Falls sofre de uma angústia semelhante à de Penny, e mesmo após uma conversa direta entre as duas, a moça não parece ter sido afetada pelas confissões da mãe, o que não condiz com a fragilidade de sua psique. Há certos simbolismos primários que poderiam ser descartados e a narração em off na última cena do filme é expositiva e desnecessária. Mas tais defeitos são menores perto de todas as suas qualidades, e em parte me incomodam por mero preciosismo meu.

“Amor em Dobro” é um conto sensível e delicado, não sobre pessoas que sofrem de uma anomalia, mas sobre irmãos que sofrem pela cumplicidade que têm um pelo outro e sobre o impacto que mesmo um breve encontro pode causar nas pessoas mais comuns. Afinal, como mostra a cena da festa à fantasia, somos todos aberrações no final das contas.