A Eterna pergunta de “Highlander” – Quem quer viver para sempre?

(Sim, faz mais de três anos que não atualizo esse espaço, mas não quero me alongar falando sobre isso. Vou logo ao assunto.)

 

Essa semana a notícia de um cientista de 104 anos que viajou da Austrália à Suíça para poder se suicidar de forma assistida rodou o mundo, e ela me fez lembrar de uma faceta do filme “Highlander – O Guerreiro Imortal” (1986) que há muito penso em escrever, mas que até agora não tinha levado adiante.

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Para quem não se lembra, “Highlander” nos mostra uma raça imortal que vive escondida entre os homens comuns. Eles não envelhecem, não adoecem e não são mortos por nenhum tipo de ferimento, com exceção da decapitação. Por algum motivo eles devem lutar entre si, arrancando a cabeça uns dos outros, em nome de um prêmio que ninguém sabe dizer o que é. Como são poucos, muitos deles vivem por vários séculos até encontrar um oponente que os supere. Acompanhamos um deles, Connor Macleod, que nasceu nas montanhas escocesas no século XVI e continua vivo nos dias de hoje (bem, nos dias da década de 1980 para ser mais exato). Apesar de ser um filme pedestre, com direção débil, ter um dos protagonistas mais robóticos daquela década (e estamos falando da década dominada por atores como Arnold Schwarzenegger e Dolph Lundgren) e um dos vilões mais infantis já criados, o fato é que “Highlander” marcou uma geração.

Mas por trás de todas as falhas, o filme traz uma camada existencialista que até hoje vi ser pouco explorada, ainda que ela seja bem óbvia: o fardo de não morrer.

SPOILER ALERT: Se você tem menos de 20 anos ou viveu numa bolha e não conhece o filme, pare aqui.

Temos o primeiro contato com o protagonista sob o nome de Russell Nash até vermos um flashback fragmentado do início da sua estória. Sua “primeira vida” é de um guerreiro de um clã escocês que defende suas cores até ser supostamente morto em batalha. Após ressuscitar pela primeira vez, sem sequer perceber o que houve, é visto pelos seus como um demônio e é exilado. Passa a ser um eremita errante até conhecer Heather, casar e viver uma vida simples como ferreiro.

heather

Nesse período aprende os desdobramentos de ser imortal e sobre sua função no “Jogo” que só acaba quando houver apenas um. Heather envelhece enquanto Connor se mantém o mesmo. Seu amor também continua o mesmo e ele permanece ao lado da esposa até sua morte devido à velhice. Então passa a vagar pelo mundo, adotando diversos nomes até chegar ao momento visto no filme, que se passa em 1986.

Vivendo como Russel Nash, ele é apático, torpe, parece mover-se apenas por inércia e duelar por mera memória muscular (características que são reforçadas pelas limitações de Christopher Lambert como ator). Os nomes que adota são de natimortos e usa a identidade de um antiquário. Parece não ter hobbies embora a cena de abertura o mostre assistindo a uma luta de boxe.

Mesmo apresentando um interesse romântico pela perita policial Brenda Wyatt, esse interesse não parece tirá-lo do seu estado quase catatônico. Apenas quando seu antigo nêmesis, Kurgan, que foi responsável por sua primeira morte, a morte de seu mestre e o estupro de sua esposa Heather, ressurge como seu último oponente é que Nash parece voltar a se sentir vivo.

 

A força de toda a projeção reside nesse estudo de personagem, na hipótese de como seria viver para sempre, quando ninguém mais o faz. Quanto de nós pertence ao outro? Quanto de nós restaria depois de nossa família, amigos, amores, professores perecessem? Depois que nossa forma de viver desaparecesse e renascesse de forma diferente? Seríamos capazes de renascer com ela? De esquecer nosso passado e nos adaptar aos presentes que se constroem e se sucedem por forças infinitamente maiores do que a nossa?

O protagonista não foi. E isso não é mostrado de forma velada, mas bastante evidente. Não é por mera conveniência que ele adota nomes de natimortos, essa escolha é reflexo de seu estado de espírito. Seu ofício de antiquário o força a conviver lembranças do passado e seu único interesse demonstrado no filme, boxe, nada mais é do que uma forma de reviver sua vida de guerreiro (como o filme também mostra logo na primeira cena). Desde o fim de seu tempo original, ele apenas existe, talvez pela impossibilidade de pôr fim à própria vida. Kurgan, última peça restante de seu passado, é o único que consegue conceder mais um suspiro de energia ao exausto Russel Nash. Kurgan o faz voltar a ser Connor Macleod.

Quando vemos um flahsback de Connor deixando sua casa para trás após a morte de Heather, há uma tomada essencial para o entendimento desse estudo de personagem: sua espada é vista como uma grande lápide com seu nome gravado. Sua vida acabou junto com a de sua esposa.  Ele não foi capaz de continuar. Não de verdade.

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Após 400 anos, ele continua sendo um guerreiro das terras altas escocesas do século XVI. Após 400 anos vagando pelo mundo sob nomes de cadáveres, ele continua sendo um Highlander.

Papaoutai

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França (2013)
Direção: Raf Reyntjens /Coreografias: Marion Motin

Em todas as minhas tentativas e experiências de escrita crítica, nunca foi meu objeto de análise  um curta-metragem, quanto menos um curta-metragem musical. No caso em questão, trata-se do tipo definitivo de curta musical: um videoclipe.

O interesse que esse clipe me despertou foi inesperado pois se trata de um tipo de música que não costumo ouvir, feita por um artista que, até então, não conhecia, em um idioma que pouco compreendo. Mas quando o assisti pela primeira vez me vi com um gosto amargo ao seu final, não causado por decepção, mas por ter absorvido a emoção presente na estória que foi contada ali.

Como não conhecia o teor da letra, foi apenas o conteúdo visual o responsável por toda aquela transmissão de emoções. Enfim, não poderia deixar de escrever sobre ele.

O artista belga Stromae é um fenômeno nos países francófonos desde 2011, e ascendeu fortemente com o álbum Racine Carée, lançado em 2013. Mas tenho certeza de que os vídeos feitos para suas músicas foram cruciais para seu sucesso, tamanha é a criatividade e qualidade artística contidas neles.

O vídeo objeto desse texto é o da música Papaoutai (“Papai, onde está você?”, em tradução livre).

No vídeo, vemos uma pequena vila  onde mora um garoto que tenta, em vão, interagir com a imagem estática de seu pai. Em sua frustração, ele admira os pais e filhos que vê passando pela frente de sua casa.

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Logo nos primeiros segundos, já podemos constatar a perspicácia sarcástica da direção de arte, que montou a vila em tons pastéis e a iluminou com uma luz levemente dourada, remetendo à nostalgia de boas lembranças, que, claramente, não é o que o protagonista sentirá ao se lembrar das situações mostradas ali.

Alguns ângulos tortos ajudam a embalar o tom fabulesco da estória, que são complementados pelos figurinos exagerados dos personagens. Como qualquer videoclipe de música pop, ele é preenchido por diversas coreografias de dança, que, surpreendentemente, não estão ali para popularizar algum passo a ser seguido em alguma “balada”, mas sim para desenvolver a natureza dos seus personagens. Assim, vemos a mãe e filha que, parecidas fisicamente e com movimentos sincronizados, aparentam ser irmãs gêmeas, seguidas do entregador de jornal que literalmente “se desdobra” para criar e entreter seu filho.

O protagonista, por outro lado, executa seus passos sozinho, com movimentos rápidos e abruptos, demonstrando toda sua raiva para com seu pai, que se mantém estático diante de suas provocações. O ator mirim que lidera o vídeo também deve ser mencionado, pois mesmo com a pouca idade surpreende com seu talento de dançarino e ator, mostrando um semblante ao mesmo tempo revoltado, admirado e com a madureza aprendida na obrigação de viver quase como um órfão.

A falta da figura paterna é tal, que mesmo as dificuldades enfrentadas por alguns filhos lhe causam admiração (mais uma vez mostradas com total esmero pela direção de arte, que troca a luz dourada por outra vermelha, enfatizando a negatividade daquelas situações),Clip-Stromae-Papaoutai-640x344 como o garoto que precisa trabalhar até tarde da noite com seu pai, ou outro que se vê intimidado pelo pai bravo, que lhe dá uma bronca. Mas mesmo esses pais e filhos se mostram plenamente sintonizados pelos passos de dança sincronizados e complementares que executam, ilustrando o elemento que o protagonista tanto admira e que lhe carece.

Não sabemos se a figura paterna presente na casa do protagonista é uma imagem idealizada pelo garoto, a ponto de dar-lhe banho e alimenta-la todos os dias, ou a representação de um pai fisicamente presente, mas emocionalmente omisso. Mas isso não importa, pois o impacto é o mesmo em seu filho, que, se espelhando àquela imagem, ao final, acaba se rendendo à ela e se torna aquilo que viu todos os dias da sua vida: uma figura estática e ausente.

Veja abaixo o videoclipe da música Papoutai. Ele também está disponível no Youtube com legendas em português lusitano.

Paris, Te Amo

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“Paris, Te Amo” (2006), é uma colaboração de diversos diretores para mostrar sua visão de um bairro de Paris e também sobre a cidade. São, ao todo, 21 curtas-metragem dirigidos por cineastas diferentes, incluindo nomes consagrados como Joel/Ethan Cohen, Walter Salles e Gus Van Sant. Foi sucedido pelos sucessos menores “New York, Te Amo”(2009) e Rio, Te Amo(2013).

Ao que parece, cada diretor teve carta branca para montar seu filme, o que nos dá as marcas pessoais de cada um deles, fazendo com que o espectador mais experimentado possa identificar alguns deles mesmo sem ler seu nome nos créditos. Assim, o curta de Walter Salles trabalha na ironia social da moça pobre que deixa seu filho na creche para trabalhar cuidando do filho de outra pessoa, enquanto os irmãos Cohen brincam com o azar de um turista, que mesmo sendo quieto e pacato se mete em confusão apenas por estar no lugar errado, na hora errada. Aliado a isso, um “time dos sonhos” de atores jovens e veteranos nivelam a qualidade dos diretores presentes.

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O filme como um todo não é monotemático e os curtas são bastante variados passando pelo drama, comédia, fantasia e romance, claro. Esse aspecto age positiva e negativamente no filme. Positiva porque o filme consegue agradar a todos, mesmo que não completamente; negativa porque os impactos emocionais conflitantes, e em sequência (podemos ver uma comédia seguida de um drama) faz com que não consigamos mergulhar profundamente em nenhum curta, e não conseguimos sentir a estória de cada personagem tão intimamente quanto poderíamos.

Outro aspecto dúbio é o grau de liberdade conferido a cada diretor, que parece que teve como único requisito, rodar o filme dentro de Paris. Isso fez com que o filme não seja um mero cartão postal da cidade (como o fraco “Rio”, do brasileiro Carlos Saldanha, que parece ter sido feito por um turista). Por outro lado, as estórias têm pouco, ou nada a ver com a cidade ou com as características de cada bairro. Se elas não estivessem em um filme chamado “Paris, Te Amo”, provavelmente nem saberíamos que se passa lá. A exceção se faz ao curta “14eme Arrondisement”, que se trata de uma verdadeira declaração de amor pela cidade, e sabiamente conclui a projeção.

paris-je-t-aime-8Ao mesmo tempo – e irei soar totalmente clichê ao dizer isso – a cidade parece surtir algum efeito nos realizadores, pois o amor está presente até nos curtas mais improváveis, como o do já citado Gus Van Sant (que mostra um interesse romântico frustrado entre dois jovens), e até mesmo no do mestre do terror Wes Craven, que mesmo não deixando sua morbidade de lado (seu curta se passa no famoso cemitério Père-Lachaise) acaba se rendendo ao amor em crise do casal protagonista. E aí também podemos ver as diferentes visões românticas de cada diretor, com curtas que ora se mostram alegres, ora melancólicos, e até “non-sense”. Quer por um par conjugal, quer por um(a) filho(a), ou outro alvo.

Ao final, é muito difícil de gostar do filme por completo, que embora seja homogêneo na qualidade da direção, linguagem e atuações, é bastante heterogêneo em temática e peso dramático, mas quando terminamos de assisti-lo, é impossível não ficarmos com uma sensação de aconchego e otimismo. Pois mais do que nos lembrar que Paris é a cidade do amor, “Paris, te amo”, nos lembra que o amor está sempre presente em todos os lugares, por mais anônimo que ele possa se mostrar.

Abaixo deixo o link para um dos curtas que mais gostei. Mais um belo trabalho da ótima e melancólica Isabel Coixet.